Criminalidade e Segurança Pública, a realidade esquizofrenizada

CRIMINALIDADE e SEGURANÇA PÚBLICA

Não há dúvida de que a crise de segurança pública vivida pelo Brasil tem mais de uma causa. É porém indiscutível a contribuição, para esse triste quadro, de um conjunto de concepções equivocadas sobre as causas da criminalidade e a responsabilidade do criminoso, concepções essas que refletem o pensamento dominante na mídia e nas universidades brasileiras, vocalizado pelos membros de nossas “classes falantes” – alguns até bem-intencionados, mas sem qualquer base em fatos reais.

Exemplo disso pode ser mais uma vez encontrado no artigo do jornalista Ricardo Rangel, publicado em O Globo de segunda-feira (11/6/2018), na página 2, e curiosamente denominado “A realidade esquizofrenizada”.

É interessante observar que Ricardo Rangel não se define, até onde sei, como alguém simpático às ideias de esquerda. Apesar disso, seu artigo é uma coletânea dos mais conhecidos (e falsos) clichês esquerdistas a respeito da questão da criminalidade – o que comprova a influência da visão “canhota” no debate sobre segurança pública.

Na tentativa de demonstrar isenção, na frase destacada logo abaixo do título do artigo (imagem na área de comentários), o autor alega que “a direita quer prender ladrões de galinha; já a esquerda parece querer soltar até os assassinos seriais”.
A ideia é óbvia (e em si mesma correta): associar o que – com alguma dose de generalização – se poderia chamar de direita a uma busca pelo aumento da punição aos criminosos, ao passo que à esquerda estaria associado o laxismo (ou mesmo o abolicionismo) penal.

Mas já começam aí os clichês: a direita “quer prender ladrões de galinha; a direita “recusa-se a falar” sobre “a equivocada e fracassada política de combate às drogas”, que estaria “na raiz da violência”. A direita “reclama do crime”, mas “não reclama do ensino deficiente”.

Então vamos lá.

Os adeptos do laxismo penal (ou da bandidolatria – leiam o excelente “Bandidolatria e Democídio”, dos promotores de Justiça Diego Pessi e Leonardo Giardin de Souza) afirmam que o Brasil (por culpa da “direita”, é claro…) “prende demais” e “prende mal”. “Prendemos quem deveria ficar solto”, diz Rangel, endossando a velha tese de que “o ladrão de galinha é quem vai para a prisão”.

De acordo com os dados do Ministério da Justiça referentes ao ano de 2015, essa é a composição da população prisional brasileira (veja a imagem abaixo):

28% dos presos são traficantes – ou, nas palavras do ministro Roberto Barroso, do STF, “meninos do tráfico” – aqueles anjos de candura que, na semana passada, armados de fuzis, interromperam o funcionamento de uma das atrações turísticas mais famosas do mundo (o bondinho do Pão de Açúcar) e do aeroporto Santos Dumont – tudo isso às 3 da tarde de um dia de semana. Vale lembrar que, com ou sem fuzil, a quase totalidade desses traficantes integra facções criminosas fortemente armadas – PCC, Comando Vermelho, ADA, Família do Norte, etc. – todas dedicadas, é claro, ao furto de galinhas…
Em seguida, com expressivos 25%, vêm os presos que cometeram roubos – roubos, vejam bem, e não furtos; é o crime popularmente conhecido como “assalto”, onde se subtrai o bem da vítima mediante violência ou grave ameaça – na grande maioria das vezes à mão armada, como sabem todos os que atuam na Justiça criminal. A esses 25% somam-se ainda os presos por latrocínio (roubo com morte): mais 3% da população carcerária.

Temos ainda 10% de assassinos, 3% de receptadores, 2% de presos por formação de quadrilha e 5% por porte ilegal de arma (a maioria, criminosos com arma de uso restrito, como fuzil).

Já chegamos a 76% dos presos (e nem mencionamos crimes como estupro e sequestro, por exemplo), e o leitor deve estar se perguntando: onde está o ladrão de galinhas?

Desista, amigo. Você não vai encontrá-lo nem mesmo entre os 13% que estão presos por furto (subtração sem violência ou ameaça) – pelo menos, não se ele for primário, pois a lei brasileira (artigo 89 da Lei n. 9.099/95) não permite que um réu primário seja condenado por furto simples (ele “tem direito” à suspensão do processo). Resta saber se o jornalista entende que o “ladrão de galinha” não deve ser preso nem mesmo se for reincidente (haja galinha !)

Outro erro comum – e repetido pelo articulista – é pensar que “a política de combate às drogas” (que o jornalista, a exemplo dos que defendem a legalização do tráfico, considera “equivocada e fracassada”) seria a causa (“está na raiz”) da violência. Numa absoluta inversão da lógica, coloca-se a repressão ao crime como CAUSA do próprio crime, e não como consequência da prática delituosa. Dentro dessa “lógica”, a polícia não combate os assaltantes de caminhões de carga porque eles roubam; o roubo de cargas é que é motivado pelo fato da polícia combater os ladrões. A culpa – adivinhem! – é da polícia. Que tal?

Tanto a premissa de que a raiz da violência no Brasil está na REPRESSÃO ao tráfico quanto a conclusão de que a solução é parar de reprimi-lo (e em seguida legalizá-lo) são igualmente simples, elegantes e… falsas, como diria H. Mencken.

Alguém em sã consciência acredita que numa cidade como Nova York, por exemplo, não exista tráfico de drogas? A resposta é óbvia. No entanto, quantas vezes você já teve notícia de traficantes armados de fuzis interrompendo a visitação à Estátua da Liberdade, ou o funcionamento do aeroporto JFK?

Aliás, qual você acha que seria a sobrevida de um criminoso ameaçando a população com um fuzil em plena luz do dia em Manhattan? Eu apostaria em alguns minutos, não em horas. Mas ai de quem sugerir isso no Brasil: vai para a categoria da “direita que defende tortura”.

Infelizmente, o grau de desinformação de nossos pretensos “formadores de opinião” sobre a questão da criminalidade é imenso. Ainda sobre o tema das drogas, Ricardo Rangel afirma no artigo que nossa legislação pode dar ao dependente “o inferno do encarceramento”. Na verdade, nossa lei de entorpecentes (Lei n. 11.343) proíbe o encarceramento do usuário de drogas (seja ele dependente ou usuário eventual), prevendo em seu artigo 28 única e exclusivamente penas de advertência, prestação de serviços e comparecimento a cursos educativos – inclusive em caso de reincidência. A lei é de 2006, o que significa que há 12 anos nenhum (repetindo: nenhum) brasileiro é condenado ao “inferno do encarceramento” por porte de drogas para uso pessoal.

Claro que não poderia faltar a tradicional correlação entre criminalidade e pobreza/falta de educação de qualidade. “Só a educação eleva o nível socioeconômico da população”, afirma o jornalista (até aí, tudo ótimo), para em seguida pular para a conclusão: “o crime é aliado dos baixos níveis de escolaridade, mas a direita, que reclama do crime, não reclama do ensino deficiente.”

Com 328 pontos no teste PISA, a República Dominicana consegue ter desempenho pior que o do Brasil (377 pontos); no entanto, a taxa anual de homicídios do país caribenho é de cerca de 17 por 100 mil habitantes, contra 30 por 100 mil em nosso país. A Argélia, com desempenho também inferior ao dos estudantes brasileiros (360 pontos), tem MENOS DE 2 homicídios por 100 mil habitantes – uma taxa assombrosamente mais baixa que a brasileira. A da Indonésia (não muito distante do Brasil na nota do PISA) é de 1 (repetindo: um) homicídio por 100 mil habitantes.

Deixando de lado a discutibilíssima afirmação de que “a direita não reclama do ensino deficiente” (de onde vêm as críticas à influência de Paulo Freire sobre nosso falido sistema educacional?), vejamos se procede essa suposta relação de causalidade entre ensino ruim e criminalidade alta.

Em recente palestra promovida em Porto Alegre pela Associação do Ministério Público do RS, o engenheiro e ativista de segurança pública Roberto Motta apresentou dados que fazem refletir sobre o tema. Pesquisando os índices obtidos por diversos países no programa internacional de avaliação de estudantes (PISA), e comparando-os com os respectivos índices de criminalidade, Motta encontrou países com pontuação no PISA inferior à do Brasil, mas com índices de criminalidade muito menores que os nossos. Com 328 pontos no teste PISA, a República Dominicana consegue ter desempenho pior que o do Brasil (377 pontos); no entanto, a taxa anual de homicídios do país caribenho é de cerca de 17 por 100 mil habitantes, contra 30 por 100 mil em nosso país. A Argélia, com desempenho também inferior ao dos estudantes brasileiros (360 pontos), tem MENOS DE 2 homicídios por 100 mil habitantes – uma taxa assombrosamente mais baixa que a brasileira. A da Indonésia (não muito distante do Brasil na nota do PISA) é de 1 (repetindo: um) homicídio por 100 mil habitantes.

Aqui vale uma observação: Roberto Motta não tem formação jurídica nem é policial, mas há anos resolveu estudar com seriedade o tema segurança pública, exatamente para não cair na armadilha dos clichês e dados falsos tão apreciados pelos “progressistas”.

O artigo de Ricardo Rangel contém ainda uma verdadeira “pérola”: ele anuncia que “está provado que quanto mais criminosos leves prendemos, mais violência criamos.”

Está provado? Por quem?

Supondo-se que a menção a “criminosos leves” não tenha relação com problemas de obesidade, o jornalista parece estar defendendo a tese de que infrações “leves” (ou, tecnicamente falando, infrações de menor potencial ofensivo) não devem ser punidas com pena de prisão. A adoção de penas alternativas para tais infrações seria uma política criminal virtuosa, que levaria à redução dos índices de criminalidade.

Ora, a política de penas alternativas para infrações “leves” defendida pelo jornalista é exatamente aquela adotada pelo Brasil desde o advento da Lei n. 9.099, no ano de 1995. Há mais de 20 anos nossa legislação prevê penas alternativas para contravenções e para crimes com pena de prisão não superior a dois anos. Na verdade, como mostra o promotor de Justiça Bruno Carpes em seu indispensável artigo “A Prisão da Verdade”, dos 1.050 tipos penais (crimes e contravenções) previstos na legislação brasileira como um todo, o juiz só é obrigado a aplicar pena de prisão em regime inicialmente fechado em… 28(!).

Praticamente na mesma época (meados da década de 90), a prefeitura da cidade de Nova York adotou uma política criminal diametralmente oposta: com base na “teoria das janelas quebradas” (professor James Q. Wilson, “Fixing Broken Windows”), segundo a qual o ambiente de desordem que se reflete na tolerância a pequenos delitos leva a uma criminalidade sempre crescente e sempre mais grave, o então prefeito Giuliani adotou uma política de tolerância zero com as infrações – inclusive as “leves”. A partir do modelo de Nova York, essa política se estendeu a quase todo o território americano.

Decorridos mais de 20 anos, alguém aqui precisa que eu esclareça qual dos dois modelos foi bem-sucedido na redução da criminalidade, se o brasileiro ou o americano?

O jornalista Ricardo Rangel visivelmente se esforçou para aparentar isenção em seu texto. Lamentavelmente, tudo que ele conseguiu produzir foi um artigo isento de qualquer informação correta sobre a criminalidade no Brasil.

A luta é difícil, mas vamos em frente.

(Dr. MARCELO ROCHA MONTEIRO, Procurador de Justiça do Ministério Público do Rio de Janeiro e professor da UERJ. Trabalhou muitos anos como Promotor de Justiça Criminal, atuando na área de homicídios. Conhece como poucos a realidade do crime fatal contra o cidadão no Rio de Janeiro e no Brasil.)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.